Andréa Mascarenhas
A violência contra crianças e adolescentes, no Brasil, atualmente está sendo pauta de jornais, revistas e programas de TV. Tornaram-se rotineiras as notícias de tragédias envolvendo crianças, dentro de sua própria família, principalmente quando a vítima é violentada gravemente. Porém as cenas deprimentes de crianças altamente feridas, estraçalhadas e mortas não são suficientes para levar a população a repensar suas atitudes em relação à prática das punições físicas.
Fala-se muito em defesa à criança e ao adolescente. Nos
estados e municípios brasileiros, há órgãos e redes de proteção. Mas por que
continua subindo assustadoramente o número de crianças agredidas a cada dia? Há
quem reclame que é devido à falta de preparo dos órgãos competentes para
atuação na causa; há quem diga que é descaso do estado, dos governantes de modo
geral.
Sem dúvida, os episódios que assistimos diariamente
mostram-nos profissionais despreparados, sem saber agir diante de casos de
omissão, de negligência e de vitimização infantil. Todavia, a culpa não está
apenas no despreparo dos órgãos competentes. O problema é que quadros de
violência grave são quase sempre precedidos de situações de violência aceitas
pela sociedade, porque acontecem disfarçadas de educação e correção, uma forma
de educação que encobre seu caráter violador.
Por que a sociedade aceita? Porque acha normal; porque “foi
assim que eu fui criado”; porque “criança tem que apanhar pra aprender”; porque
“apanhei e estou vivo.” etc.
É preciso que a sociedade pare de aceitar como normais episódios
de crianças sendo agredidas pelos seus pais, com a justificativa de que eles estão
educando. As tristes cenas que observamos quase todos os dias através de meios
de comunicação, quando não na nossa própria vizinhança, são cruéis o suficiente
para levaram milhões de pessoas à reflexão. Precisamos parar de culpar apenas
os órgãos de defesa à criança, precisamos parar de fingir que não vemos. O
ciclo precisa ser quebrado, e isso só ocorrerá quando cada pessoa se colocar no
lugar do menino e da menina que sofre. Não podemos continuar perdendo crianças
para essa prática, ela não pode ser mais forte que nós.
Segundo a Constituição, é de responsabilidade de todo
cidadão a proteção à criança. O Estatuto da Criança e do Adolescente também estabelece como dever
de todos a prevenção de ocorrências de violação dos
direitos da criança e do adolescente, assegura-lhes proteção integral, com absoluta prioridade; garante-lhes o direito à vida, à
dignidade e ao respeito, e o direito de serem colocados a salvo de toda forma
de negligência. Portanto, somos todos corresponsáveis com a
segurança das crianças e adolescentes, razão pela qual devemos denunciar casos
de violência a estes seres, não importando quem seja seu agente.
A sociedade precisa saber que a criança é um ser
indefeso; que ao ouvir o seu choro – e muitas vezes até o barulho de pancadas
dirigidas a ela – a denúncia e a acusação aos seus pais não se trata de um
gesto rude e absurdo. Rude e absurdo é ignorar o choro, a dor, os pedidos de
socorro de seres inocentes e indefesos.
As dinâmicas do processo e do ciclo de violência contra
crianças e adolescentes podem ser percebidas diariamente numa mãe que ontem deu
uma palmada em seu filho, que hoje usa um objeto considerado ‘leve’ para
bater-lhe, e amanhã, certamente, usará do cinto, da vara e do pedaço de pau. Esse
processo pode ser demonstrado da seguinte forma:
Muitos pais e mães sonham com filhos obedientes,
comportados e educados. E, muitas vezes, colocam expectativas neles que, na
verdade, deveriam ser suas. Eles deveriam criar expectativas a respeito deles
mesmos: Que pai e mãe eu devo ser para meu filho? O que devo fazer para educar
melhor o meu filho? Como eu devo ser para que meu filho, espelhando-se em mim,
não corra o risco de absorver qualquer postura desagradável? Porém, o que
percebemos é muito controverso. Pais querem filhos educados, mas não usam de
educação com eles; pais desejam ter filhos calmos, no entanto gritam com eles;
querem filhos atenciosos e gentis, todavia os tratam com arrogância e
intolerância. Como dessa forma é difícil terem o modelo de filhos que
desenharam, não conseguindo o retorno de que querem a respeito de valores pré-estabelecidos,
falta-lhes paciência e tolerância pra ensinar-lhes até que aprendam. E usam de
meios como castigos, pancadas e outras formas de humilhação.
Os
filhos não conseguem atender às expectativas dos pais.
O compromisso da criança é com o brinquedo. A
responsabilidade, a compreensão das coisas e valores é fruto do aprendizado
diário e, principalmente, do exemplo dos pais. A criança não aprende de forma
igual e nem em tempos iguais. Cada criança é um ser único e dotado de
habilidades e comportamentos diferentes. Cabe aos pais orientá-la, esperando
dela apenas o que pode corresponder. Conhecer as fases do desenvolvimento da
criança e cobrar-lhe posturas que ela tem condições de corresponder é algo que
traz grandes benefícios à relação. Todos saem ganhando.
Os pais acham que estão
fracassando e aplicam punição “leve” no filho.
Ao passo que se vestem de “autoridade”, os pais não aceitam ser contrariados em suas ordens, passam a punir a criança, a fim de conseguirem a
postura que julgam importante para ela.
Há uma renovação das expectativas dos pais.
Castigada, uma criança pode até retribuir, em curto
prazo, o comportamento que o pai lhe impõe. Isso não significa que houve o
aprendizado e que ela, enfim, aprendeu o comportamento. O pai renova as suas
expectativas, faz-lhe novas exigências.
O ciclo recomeça. Há uma expectativa dos pais em relação
ao comportamento dos filhos. Os filhos não
conseguem atender às novas expectativas dos pais. Os pais acham que estão
fracassando e aplicam punição mais forte nos filhos...
A criança ou o adolescente pode até corresponder mais uma
vez, porém o fará por receio de receber um novo castigo e, tão logo o medo o/a
deixe, vem novo comportamento ‘inadequado’. E vem uma punição mais forte, mais
dolorosa, mais cruel, até chegar àquelas que vemos, diariamente, nos jornais,
que a cada dia nos assustam, mas continuam nos deixando passivos, inertes.
E a sociedade segue afirmando: “Sempre foi assim.” “Criança
tem que apanhar pra aprender.” “Cada pai e mãe sabe o que é melhor para seu
filho.” “Foi assim que eu fui criado.” “Apanhei e estou vivo.” “O estado não
deve ‘se meter’.” etc.
E o ciclo da violência continua.
Quando a sociedade vai sair do estado de passividade e de
inércia? Quando cada pessoa tiver uma criança morta na vizinhança? Quando vir
um pai ou uma mãe que hoje dá em seu filho uma surra de cinto e vara, amanhã
lhe dando pauladas, jogando-lhe pela janela de um prédio ou lhe queimando o
corpo?
O rol de vícios alimenta a
divulgação de notícias cada vez mais desprovidas de compromisso com a mudança da
realidade social. Assiste-se a noticiários, percebem-se os danos, culpa-se aos
órgãos competentes, clama-se, protesta-se, mas no dia seguinte cenas voltam a
ser ignoradas e vistas como normais. E a mesma sociedade que gritou no protesto
continua afirmando que cada mãe e cada pai sabe o que é melhor para seu filho.
Andréa Cristina Mascarenhas Nascimento dos Santos