terça-feira, 18 de março de 2014

A VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES – POR QUE É TÃO DIFÍCIL QUEBRAR A CORRENTE?

Andréa Mascarenhas

A violência contra crianças e adolescentes, no Brasil, atualmente está sendo pauta de jornais, revistas e programas de TV. Tornaram-se rotineiras as notícias de tragédias envolvendo crianças, dentro de sua própria família, principalmente quando a vítima é violentada gravemente. Porém as cenas deprimentes de crianças altamente feridas, estraçalhadas e mortas não são suficientes para levar a população a repensar suas atitudes em relação à prática das punições físicas.

Fala-se muito em defesa à criança e ao adolescente. Nos estados e municípios brasileiros, há órgãos e redes de proteção. Mas por que continua subindo assustadoramente o número de crianças agredidas a cada dia? Há quem reclame que é devido à falta de preparo dos órgãos competentes para atuação na causa; há quem diga que é descaso do estado, dos governantes de modo geral.

Sem dúvida, os episódios que assistimos diariamente mostram-nos profissionais despreparados, sem saber agir diante de casos de omissão, de negligência e de vitimização infantil. Todavia, a culpa não está apenas no despreparo dos órgãos competentes. O problema é que quadros de violência grave são quase sempre precedidos de situações de violência aceitas pela sociedade, porque acontecem disfarçadas de educação e correção, uma forma de educação que encobre seu caráter violador.

Por que a sociedade aceita? Porque acha normal; porque “foi assim que eu fui criado”; porque “criança tem que apanhar pra aprender”; porque “apanhei e estou vivo.” etc.

É preciso que a sociedade pare de aceitar como normais episódios de crianças sendo agredidas pelos seus pais, com a justificativa de que eles estão educando. As tristes cenas que observamos quase todos os dias através de meios de comunicação, quando não na nossa própria vizinhança, são cruéis o suficiente para levaram milhões de pessoas à reflexão. Precisamos parar de culpar apenas os órgãos de defesa à criança, precisamos parar de fingir que não vemos. O ciclo precisa ser quebrado, e isso só ocorrerá quando cada pessoa se colocar no lugar do menino e da menina que sofre. Não podemos continuar perdendo crianças para essa prática, ela não pode ser mais forte que nós.

Segundo a Constituição, é de responsabilidade de todo cidadão a proteção à criança. O Estatuto da Criança e do Adolescente também estabelece como dever de todos a prevenção de ocorrências de violação dos direitos da criança e do adolescente, assegura-lhes proteção integral, com absoluta prioridade; garante-lhes o direito à vida, à dignidade e ao respeito, e o direito de serem colocados a salvo de toda forma de negligência. Portanto, somos todos corresponsáveis com a segurança das crianças e adolescentes, razão pela qual devemos denunciar casos de violência a estes seres, não importando quem seja seu agente.

A sociedade precisa saber que a criança é um ser indefeso; que ao ouvir o seu choro – e muitas vezes até o barulho de pancadas dirigidas a ela – a denúncia e a acusação aos seus pais não se trata de um gesto rude e absurdo. Rude e absurdo é ignorar o choro, a dor, os pedidos de socorro de seres inocentes e indefesos.

As dinâmicas do processo e do ciclo de violência contra crianças e adolescentes podem ser percebidas diariamente numa mãe que ontem deu uma palmada em seu filho, que hoje usa um objeto considerado ‘leve’ para bater-lhe, e amanhã, certamente, usará do cinto, da vara e do pedaço de pau. Esse processo pode ser demonstrado da seguinte forma:


Há uma expectativa dos pais em relação ao comportamento dos filhos.
Muitos pais e mães sonham com filhos obedientes, comportados e educados. E, muitas vezes, colocam expectativas neles que, na verdade, deveriam ser suas. Eles deveriam criar expectativas a respeito deles mesmos: Que pai e mãe eu devo ser para meu filho? O que devo fazer para educar melhor o meu filho? Como eu devo ser para que meu filho, espelhando-se em mim, não corra o risco de absorver qualquer postura desagradável? Porém, o que percebemos é muito controverso. Pais querem filhos educados, mas não usam de educação com eles; pais desejam ter filhos calmos, no entanto gritam com eles; querem filhos atenciosos e gentis, todavia os tratam com arrogância e intolerância. Como dessa forma é difícil terem o modelo de filhos que desenharam, não conseguindo o retorno de que querem a respeito de valores pré-estabelecidos, falta-lhes paciência e tolerância pra ensinar-lhes até que aprendam. E usam de meios como castigos, pancadas e outras formas de humilhação.

Os filhos não conseguem atender às expectativas dos pais.
O compromisso da criança é com o brinquedo. A responsabilidade, a compreensão das coisas e valores é fruto do aprendizado diário e, principalmente, do exemplo dos pais. A criança não aprende de forma igual e nem em tempos iguais. Cada criança é um ser único e dotado de habilidades e comportamentos diferentes. Cabe aos pais orientá-la, esperando dela apenas o que pode corresponder. Conhecer as fases do desenvolvimento da criança e cobrar-lhe posturas que ela tem condições de corresponder é algo que traz grandes benefícios à relação. Todos saem ganhando.

Os pais acham que estão fracassando e aplicam punição “leve” no filho.
Ao passo que se vestem de “autoridade”, os pais não aceitam ser contrariados em suas ordens, passam a punir a criança, a fim de conseguirem a postura que julgam importante para ela.

Há uma renovação das expectativas dos pais.
Castigada, uma criança pode até retribuir, em curto prazo, o comportamento que o pai lhe impõe. Isso não significa que houve o aprendizado e que ela, enfim, aprendeu o comportamento. O pai renova as suas expectativas, faz-lhe novas exigências.

O ciclo recomeça. Há uma expectativa dos pais em relação ao comportamento dos filhos. Os filhos não conseguem atender às novas expectativas dos pais. Os pais acham que estão fracassando e aplicam punição mais forte nos filhos...

A criança ou o adolescente pode até corresponder mais uma vez, porém o fará por receio de receber um novo castigo e, tão logo o medo o/a deixe, vem novo comportamento ‘inadequado’. E vem uma punição mais forte, mais dolorosa, mais cruel, até chegar àquelas que vemos, diariamente, nos jornais, que a cada dia nos assustam, mas continuam nos deixando passivos, inertes.

E a sociedade segue afirmando: “Sempre foi assim.” “Criança tem que apanhar pra aprender.” “Cada pai e mãe sabe o que é melhor para seu filho.” “Foi assim que eu fui criado.” “Apanhei e estou vivo.” “O estado não deve ‘se meter’.” etc.

E o ciclo da violência continua.

Quando a sociedade vai sair do estado de passividade e de inércia? Quando cada pessoa tiver uma criança morta na vizinhança? Quando vir um pai ou uma mãe que hoje dá em seu filho uma surra de cinto e vara, amanhã lhe dando pauladas, jogando-lhe pela janela de um prédio ou lhe queimando o corpo?

O rol de vícios alimenta a divulgação de notícias cada vez mais desprovidas de compromisso com a mudança da realidade social. Assiste-se a noticiários, percebem-se os danos, culpa-se aos órgãos competentes, clama-se, protesta-se, mas no dia seguinte cenas voltam a ser ignoradas e vistas como normais. E a mesma sociedade que gritou no protesto continua afirmando que cada mãe e cada pai sabe o que é melhor para seu filho.


Andréa Cristina Mascarenhas Nascimento dos Santos